Um dos maiores jornais do Brasil trouxe como destaque em sua
página eletrônica na edição desta segunda-feira (03/02) a lembrança do Regime
Militar da Década de 60 e a interrupção das 40 Horas do Método de Alfabetização
de Jovens e Adultos que tinha como mentor o educador Paulo Freire.
Confira na íntegra a seguir o artigo da Coluna Cotidiano:
ANGICOS (RN)
Maria Eneide Araújo, 63, escondeu seus cadernos embaixo do colchão. Não queria
perder a recordação da alfabetização, mas não teve jeito. Os boatos de que
aquelas anotações poderiam levar seu pai Severino e sua mãe Francisca presos
após o golpe militar de 1964 fizeram com que Eneide as entregasse e todas foram
queimadas.
Em Angicos, no
sertão do Rio Grande do Norte, outras pessoas fizeram o mesmo naqueles meados
dos anos 1960: quem não queimou, enterrou cadernos e livros que os ligassem às
aulas que receberam dos monitores orientados por
Paulo Freire, que acabou preso e depois exilado pelo novo regime por
ser considerado comunista.
A cidade
potiguar recebeu em 1963 o primeiro experimento do método criado pelo educador
para alfabetização de adultos e o objetivo era ambicioso: ensinar a ler 300
pessoas em 40 horas de aulas, em projeto que por isso ficou conhecido como as
40 horas de Angicos.
Passados 57
anos, Freire e seu método baseado no uso de palavras e vivências do cotidiano
dos alunos é hoje o principal alvo da política educacional do governo federal.
O
presidente Jair
Bolsonaro já se referiu recentemente ao pernambucano, morto em 1997,
como "energúmeno" e o ministro da Educação, Abraham Weintraub,
afirmou várias vezes que o governo quer acabar com qualquer resquício
da teoria nas escolas brasileiras.
Em Angicos,
porém, Freire é onipresente. Na entrada da cidade, quando se sai da BR-304 que
liga a cidade de pouco mais de 11,5 mil habitantes à capital Natal (190 km), há
um portal com uma frase do educador, de 1993, quando esteve por lá naquele ano
para receber o título de cidadão angicano: "Nunca me senti tão acolhido
como aqui", diz um trecho.
A aposentada Francisca de Brito, 75, que, aos
18 anos, participou das 40 horas de Angicos, o primeiro experimento do Método
Paulo Freire de Alfabetização de Adultos.
Já alguns quilômetros à frente, ao lado da pequena
rodoviária, fica a Casa de Cultura Popular Professor Paulo Freire, na
construção da antiga estação férrea que foi transformada em um local para
tentar resgatar a passagem de Freire e seus monitores por ali.
"A história ficou um bom tempo esquecida na
cidade. O resgate começou há uns dez anos, com a chegada da universidade",
conta a professora Cinara Dantas, que já foi secretária de educação da cidade.
A Ufersa (Universidade Federal Rural do Semi-Árido) tem
sede em Mossoró (RN), mas possui um campus em Angicos com cursos como
engenharia pedagogia. Em 2013, um documentário foi produzido pela Ufersa para
comemorar os 50 anos do projeto.
Dos 300 alunos que tiveram aulas com 20 monitores,
todos voluntários, nos primeiros meses de 1963, 16 ainda estão vivos e moram em
Angicos.
Maria Eneide Araújo tinha seis anos quando ia às aulas
com seus pais. O foco, claro, era alfabetizar adultos, mas a garotinha à época
era usada pelos professores como um estímulo para que os familiares saíssem de
casa à noite para estudar.
"As palavras eram projetadas na parede [por meio
de slides]. Por exemplo: tijolo. Os professores explicavam como era fabricado,
onde era usado, quanto custava, e com isso as letras e sílabas eram trabalhadas.
Outra palavra muito usada foi belota, e muita gente que vem aqui nem sabe o que
é. É bem local mesmo, aqueles adereços coloridos que enfeitamos as redes de
dormir", disse Eneide, que continuou os estudos e se tornou professora.
Os monitores identificaram mais de 300 palavras do
vocabulário local para serem usadas nas aulas e incluíram outras que achavam
importante, como voto, para trabalhar conscientização social e política que
também fazia parte do método de Freire.
Eneide teve participação especial na aula de
encerramento que teve a presença de Paulo Freire, que não esteve em Angicos o
tempo todo durante o curso, e do presidente João Goulart.
"Ele [o presidente] pediu para eu ler uma notícia
de um jornal para mostrar que tinha aprendido. Li e ele me disse que eu poderia
pedir um presente e eu pedi uma bolsa para levar meus cadernos às aulas",
contou Eneide. Ela recebeu o presente.
Goulart, que seria retirado pelos militares da presidência um ano
depois, tinha interesse em nacionalizar o método que o governo do Rio Grande do
Norte estava patrocinando --a escolha de Angicos se deu porque o governador
potiguar à época, Aluizio Alves, era natural da cidade. Apesar de conservador,
Alves topou experimentar a ideia de Freire, que já era taxado de comunista,
porque tinha sido eleito com a promessa de alfabetizar 100 mil pessoas.
Havia também o
interesse político, já que analfabetos não votavam e a maioria dos 300 alunos
das 40 horas de Angicos aprendeu, ao menos, a assinar o nome, o que já daria direito
a participar de eleições.
As aulas eram
dadas em casas emprestadas por moradores ou prédios públicos. Até a delegacia
foi usada. "Eles passavam pelas ruas avisando que teria as aulas, que
seria de graça e perguntando onde teria um prédio que pudessem usar. Me
perguntaram e eu disse olha, tem aquele ali, a delegacia, é só falar com o
delegado", disse Geraldo Souza, 90.
Ele, que
trabalhou na roça a vida toda, frequentou as aulas justamente na delegacia,
junto com soldados e alguns poucos presos. Aprendeu a ler o básico e a escrever
o nome e pôde votar. Esteve nas urnas na última eleição, em 2018, mas diz que
agora não pretende mais comparecer (o voto é facultativo após os 70 anos).
"Já estou velho".
"Minha
mãe me proibiu de ir, mas eu ia às aulas escondida. Ela dizia que era coisa de
comunista, que a conversa na cidade era essa. Depois meu pai descobriu e
apoiou, disse que era bom aprender", contou Francisca de Brito, 75. Ela
frequentou as aulas com 18 anos, gostou do que aprendeu e seguiu os estudos até
o fim do que hoje é o ensino fundamental. "Aprendi a ler por causa do
Paulo Freire, graças a ele, e hoje consigo ler a palavra de Deus", disse
Brito, evangélica.
Em 1963,
Angicos tinha uma escola e mais de 90% da população era analfabeta. Hoje são
seis municipais, três estaduais e duas particulares --segundo dados do IBGE
(Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), a taxa de escolarização dos
6 aos 14 anos é de 96,4%, o que coloca o município apenas na 134ª colocação
entre as 167 cidades potiguares.
Uma das
escolas da cidade é a Professor José Rufino, no centro, que em 1963 recebeu a
aula de encerramento com a presença de João Goulart. Hoje há um mural com fotos
de Paulo Freire na cidade em 1993, mas as recordações de 1963 são mínimas.
Com cadernos e
anotações queimados ou enterrados, há poucos registros das 40 horas de Angicos:
uma cadeira onde Paulo Freire sentou, que está na Casa Popular, ou uma foto que
Maria Eneide Araújo tem em um panfleto em que ela está lendo o trecho do jornal
pedido por Jango. "Se teve algo de ruim foi que foi rápido demais, acabou
logo. Era muito bom aprender", disse Francisca de Brito.
Fonte: Jornal Folha de São Paulo
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