Educadores angicanos,
uni-vos!
Caríssimas e caríssimos,
reconheço que no ápice de minha idade e toda a experiência perfilada até aqui,
a carta parece ser um instrumento já
um tanto quanto inadequado. Os correios eletrônicos e as mídias atuais
aproximam e tornam mais rápidas as informações, pessoas, e todo um conjunto de
ações. Mas, parto de um exemplo aprendido com Paulo Freire em Cartas a Cristina: reflexões sobre minha
vida e minha práxis, livro que estou lendo cuidadosamente para aprender
acerca da filosofia FREIRE. Aprendi também, com o exemplo de Professora Sim, tia não: cartas a quem ousa
ensinar (esse livro já li inúmeras vezes), que a carta tem sua magia
comunicativa, e por isso faço essa aposta, nesse começo de noite, nesta
modalidade textual. Escrevo esta carta com o mesmo sentimento que escrevi
cartas para Bia, mulher moradora da comunidade de Pataxó quando seu marido teve
que ir para São Paulo em busca de uma vida melhor. Como muitos nordestinos,
esse sonho foi impedido pela violência que atinge essa população em outro lugar
que não é originalmente o seu. Escrevo, como quem testemunha a experiência
feita em educação, até aqui, neste momento.
Nesta carta, apresento a
todos vocês, um pouco de vocês e do que conseguimos capturar ao longo de nossa
estada neste município. Apresento, portanto, um projeto que é mais uma aposta,
no sentido utilizado pelo filósofo Edgar Morin, do que propriamente uma
estratégia de trabalho.
O chamamento para uma
educação angicana, pública, laica, gratuita, de qualidade e democratizante é o
desejo profundo da Secretaria de Educação deste município para o biênio
2019-2020. Reconhecer – Potencializar – Valorizar é a
tríade filosófica que estamos assumindo para este período com todos vocês –
professores, coordenadores, pais, ASG, diretores, vigilantes, familiares e
comunidade.
Reconhecer os existentes invisibilisados pela lógica hegemônica exige
de cada um de nós um olhar cuidadoso e responsável para com todas as
existências, especificamente aquelas indiciárias. Existem, mas não são vistas e
reconhecidas em sua grandeza.
O que reconhecer? A partir dos diferentes espaços-tempos cotidianos
perceber-destacar, como nos ensina Paulo Freire, práticas que vem enlaçando,
tais como: a reorganização de materiais didáticos, o reaproveitamento de
sucatas; maneiras não-autorizadas de agrupamentos; o uso do corpo quando a
lógica matemática imposta não produz sentidos; o nó em pingo d’água; os
momentos de “se vira nos 30”; “fazer das tripas, coração”, etc. Tudo precisa
ser desinvisibilizados, ou seja, tornado existente.
O segundo princípio
filosófico, potencializar, tem relação direta com o primeiro, e
refere-se aos diferentes saberes-fazeres-poderes que os angicanos articulam em
suas especificidades. Antes, porém, é preciso dizer o que estamos concebendo
por este princípio. Com ajuda do sociólogo português Boaventura de Sousa Santos
(seu nome já é carregado de beleza) afirmamos que potencializar é dilatar,
amplificar no tempo presente os existentes, agora desinvisibilizados, como
possíveis.
Neste sentido,
perguntamos: o que potencializar-dilatar no tempo presente? Uma das
respostas que nos parece mais coerentes é partir daquilo que Freire nomeia de
“experiência feita” – conjunto de práticas produzidas cotidianamente pelos
sujeitos para além da lógica hegemônica.
O terceiro princípio
filosófico, valorizar está relacionado diretamente ao princípio
ontológico freireano o “ser mais”. a valorização que pretendemos, a partir
deste nosso projeto educativo é investir no humano, em suas zonas de
desenvolvimento proximal, de tal maneira que o já sabido passe intenso e
permanente processo de transformação e libertação humana. É preciso valorizar
as soluções positivas, invencionadas por todos os educadores em fazeres
cotidianos.
Nesta altura do texto,
vocês devem estar se perguntando como é possível Reconhecer – potencializar – Valorizar
desde dentro, de dentro e por dentro de nossas escolas os diversos e diferentes
saberes-fazeres-poderes existentes-possíveis?
Inicialmente, acredito
que um caminho a ser feito é produzir um documento
curricular que nos identifique e que nos ajude a tecer o processo educativo
local. Fabricar nosso currículo, no sentido certeuniano, é produzir nossa
existência de maneira autêntica, identitária e legitimando o que somos e o que
podemos vir-a-ser.
Pensando por esta
perspectiva, de produzir/fabricar nossa existência identitária, não podemos
continuar invisibilizando uma das mais robustas experiências de educação
brasileira trançada neste torrão – A
experiência das 40 horas. Paulo freire inaugurou, aqui, um processo
educativo que mais tarde seria reconhecido por muitos brasileiros, ocidentais e
orientais como a Pedagogia do Oprimido; Educação como prática de liberdade; A
importância do ato de ler; Professora sim, tia não; Pedagogia da Indignação;
Pedagogia da Esperança; Pedagogia da autonomia e tantos outros textos
encarnados nesta experiência que se potencializou em várias outras culturas.
Pensar um documento
curricular municipal que agregue, mesmo que inicialmente essa reflexão
antropológica freireana nos coloca o desafio de explicitar o que estamos
concebendo por currículo, e com quem nos arriscamos a dizer o que dizemos.
Um mineiro arretado,
chamado de Tomaz Tadeu da Silva tem nos ensinado que currículo é vida, e que se
produz nas diferentes trajetórias – autorizadas e não-autorizadas. Ou seja,
tudo aquilo que fazemos-pensamos no percurso de nossas vidas, inclusive na
escola, mas não somente nela, implica e se traduz como currículo, por que nos
articula, nos informa, nos tece, nos enlaça e nos forma.
Paulo Freire, nunca
escreveu sobre currículo. Não identificamos em sua vasta obra nenhum registro
específico. Contudo, aprendemos com suas experiências, inclusive a experiência
das 40 horas, de que os currículos são gerados nos e pelos contextos locais,
sem excluir os regionais, nacionais e internacionais.
Tomemos por exemplo, o
que Paulo Freire e alguns estudantes da UFRN fizeram no início dos anos 60,
nesta cidade. Inicialmente, eles leram os percursos e trajetórias de adultos
sem os processos de alfabetização inicial. Em seguida, com estes mesmos
estudantes problematizou cada um dos saberes apreendidos no percurso, sistematizando-os
em temas geradores, para depois, nos círculos de cultura produzirem as
conectividades que proporcionariam a passagem de um estágio de não
alfabetizados para um outro de alfabetizados.
Assim, senhoras e
senhores, pensar um documento curricular municipal que se reconecte a essa
proposta antropológico-filosófica freireana nos coloca, como urgentes, alguns
movimentos dialéticos e dialógicos, tais como:
É preciso cartografar-ler os cotidianos sociais e
educativos de nosso município, a fim de desinvisibilizar existentes. Para isso,
sugerimos com a educadora Nilda Alves realizar o mergulho profundo e com todos os sentidos nos espaços-tempos de uso
dos praticantes da escola. Ou como diria o próprio Freire “entregar-se de vez
em quando a um profundo recolhimento” a fim de traduzir melhor as tensões e
possibilidades que constituem o jogo cotidiano.
O mergulho profundo, com
todos os sentidos, possibilitará a captura de práticas diversas, denominadas
por Freire de percebidos-destacados
e, por conseguinte parteja-los: fazer o parto, transformando-os em
inéditos-viáveis.
É dessa matéria – dos percebidos-destacados e dos inéditos-viáveis que podemos elaborar um
documento curricular municipal, autêntico. A autenticidade não advém de
projetos externos as nossas utopias, como vem se configurando a BNCC. O nosso
projeto educativo autêntico respeita e reconhece a importância da BNCC, mas tem
nos ensinado a curriculista Elizabeth Macedo que só é possível vê-la sob rasura
e entende-lo como um projeto viabilizador de uma lógica indolente que
marginaliza saberes locais provocando o que o Boaventura Santos denomina de
epistemicídio – a morte da identidade local.
Você devem estar
lembrados da saudação inicial com a qual iniciei a leitura desta carta:
Educadores Angicanos, uni-vos! Deve se constituir premissa que nos impulsione
ao trabalho educativo escolar para este anos e os vindouros. Sabemos e reconhecemos
a arte que tem cada um de vocês têm – queremos dilatá-la amorosamente.
Podemos fazer isso
juntos, com a força, a estampa e a experiência de parceiros: familiares,
comerciantes, religiosos, microempreendedores, artesãos, associações,
universidade (UERN, UFERSA), DIREC e toda a comunidade.
Reforçamos ainda, embora
não pareça necessário, dada a evidência da intensa participação, conclamar o
Prefeito Deusdete Gomes a continuar investindo intensamente no cuidado e zelo
com a educação deste município. Vossa Excelência sabe que o reconhecimento,
potencialização e valorização da educação dependerá, também de seu gosto e
responsabilidade com os munícipes.
Por fim, agradecer a
todos vocês pela escuta sensível e mais uma vez convocá-los para a realização
de um trabalho decente que produza em todos nós a emancipação humana que tanto buscamos.
Francisco Canindé da
Silva
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